Pés, mãos e cabeça: memória, oralidade e africanidades nossas de cada dia.

Escultura africana. Visita ao Instituto Cultural baba Toloji. Canjerê, 2014.
Escultura africana. Visita ao Instituto Cultural baba Toloji. Canjerê, 2014. Foto: Luis Tarley

*Alessandra Gama | Ibaô

A[s] cultura[s] de matriz africana é[são] formada[s] por inúmeras manifestações, saberes e expressões, nascidas a partir do tráfico de diversas etnias africanas para o Brasil, ainda no período colonial, que foram concentradas para o trabalho escravo. De acordo com o MEC (2006, p. 14):

A partir do século XVI, as populações negras desembarcadas no Brasil foram distribuídas em grande quantidade nas regiões litorâneas, com maior concentração no que atualmente se denomina regiões Nordeste e Sudeste, cujo crescimento econômico no decorrer dos séculos XVII, XVIII e XIX foi assegurado pela expansão das lavouras de cana-de-açúcar. Esse processo garantiu aos senhores do engenho e latifundiários um grande patrimônio, enquanto, em precárias condições de vida, coube ao povo negro, em sua diversidade, criar estratégias para reverenciar seus ancestrais, proteger seus valores, manter e recriar vínculos com seu lastro histórico.

Neste cenário, criava-se no Brasil uma herança africana, que iria compor o desenvolvimento cultural do povo brasileiro. Cultura presente na arte, na culinária, no vestuário, na fala, na educação, nos laços familiares, no trabalho, enfim, no modo de viver e sobreviver e no comportamento d@s brasileir@s que receberam fortemente as influências trazidas pelos povos africanos. Das mais variadas formas de expressão e resistência cultural do povo africano no Brasil, elementos como o canto e a expressão corporal, derivam muitas outras formas de comunicar-se com o mundo.

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Contramestre David na roda do Canjerê 2014. Foto: Ale Gama.

Os africanos escravizados e sequestrados, eram originários de diferentes etnias (Banto, Nagô, Jêje-Fon e outras), por vezes, conservando características semelhantes, porém não idênticas, entre os elementos da sua cultura, fossem no idioma, ritos, hábitos domésticos, danças, etc. Das expressões surgem representações da ancestralidade: no culto religioso, nas coroações de reis e rainhas, maracatu, congadas, coco, samba de roda, jongo, afoxés. Dos cantos, das lutas, relatos do cotidiano, se fez a trajetória do povo negro. Da combinação de todos os elementos ritualísticos, surgem e ressurgem as manifestações culturais e a resistência da memória na diáspora.

Felipe, integrante do Afoxé Ibaô Inã ati Omi. Cortejo do Carnaval na comunidade, 2015. Foto: Mandy Castro.

Reinventa-se uma nova África e aqui , disseminamos os conceitos e os valores civilizatórios das etnias africanas em nosso país. Temos a capoeira, uma expressão cultural considerada arte, luta e dança, que se afirmou como a principal forma de defesa, utilizada pelos perseguidos na época da escravidão e hoje é Patrimônio Cultural da Humanidade. A história da capoeira se confunde com a história constituída na época colonial do Brasil, período em que o tráfico de escravos de diversas regiões da África encontrou em terras brasileiras, possivelmente, os maiores consumidores da mão-de- obra escravocrata.

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Polyana e Fabrício, na roda de Capoeira no Balaio das Águas, 2014. Foto: Robson Bonfim, cedida em Creative Commons.

O tempo passou e algumas marcas foram perpetuadas pelo período de grande contingência dos povos africanos, que aqui forçosamente tiveram de reconstruir a sua identidade. A forma encontrada para que suas tradições fossem mantidas, designou à oralidade um papel fundamental para a preservação e transmissão de determinados costumes e valores das nações africanas no Brasil.

A tradição oral tem enorme significância para as culturas africanas, através do sopro sagrado, se formam as palavras que os mais velhos transmitem aos mais novos. De geração em geração, as tradições, os conhecimentos acerca do cotidiano sobre a natureza, sobre os antepassados, enfim, os valores da sociedade e as concepções circunscritas pelas referências ancestrais, se atualizam no tempo presente. É através da memória individual e coletiva que se guardam e se presentificam os segredos da iniciação nos mais diversos ofícios, cantos, rituais, portanto tudo isso faz parte do passado e do presente de cada indivíduo em sua comunidade.

Para nós no Ibaô, essa continua sendo uma referência fundamental e ao nosso modo, vamos compartilhando conhecimentos, jeitos e processos que se constituem da partilha e nos permitem [re] construir nosso passado, com as mãos e cabeça no presente e os pés no futuro.

Referência citada:

MEC. Orientações e ações para a educação das relações étinco-raciais. Brasília: Secad, 2006.

*Alessandra Gama: cofundadora do Instituto Baobá de Cultura e Arte e articuladora institucional, atua na gestão de projetos. É Educadora Popular, pesquisadora e atualmente, mestranda em Educação, Comunidades e Movimentos Sociais, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).